capitulo I ( todas as histórias tem o seu princípio)

( Porto,  março 2009)

Esta historia começa mal: sexta-feira-treze, trânsito enfartado no lusco-fusco de um Outono mal resolvido – um acidente acontece em plena Avenida.

Eu, a caminho do meu encontro, ainda não sei, mas suspeito: um semáforo daltónico,  uma mulher ao volante, uma correria para chegar a casa no dia esgotado; os pensamentos, a mil a hora, sem conseguirem travar a tempo – o embate seco.

Os escombros, de pouca monta, são rapidamente resolvidos por pirilampos salvadores. Nada demais – por agora; nada que me tire a satisfação do ritual sagrado das noites de sexta: jantar no restaurante de sempre, com os outros dois cúmplices, para início de partida com prolongamento, por vezes, num dos bares da Baixa – momento alto da nossa semana de médicos devotados, sem mulher nem filhos a atrapalharem-nos a solidão.  Temos uma amizade de vinte anos feita de cumplicidade poderosa; filtrada de invejas ou pesagens constantes na balança dos teres e haveres da vida. Desconfio que é um mundo completamente vedado às mulheres, uma espécie de Terra do Nunca que nunca terão entre elas.

Enfim, chego. A atmosfera de sempre no Galinha do Campo onde os outros já me levam avanço:

– Vamos começar a segunda parte: cabrito no forno. Perdeste a atuação – irrepreensível – da sopa de legumes!

– Um trânsito apoplético!

Palmadinhas nas costas, fraternas; os cheiros e os sorrisos habituais do restaurante que me acolhe – uma segunda casa, onde partilhamos desamores, vitórias e derrotas, piadas e opiniões políticas. O Sr. Rodrigues desabafa ansiedades futebolísticas enquanto nos serve o arroz de grelos – antídoto para qualquer tristeza! -, tudo numa algazarra eficaz a ligar os sensores da felicidade.

Estávamos no encore (merecido!) do cabrito quando o meu telemóvel tocou, num prenúncio de tragédia:

– Tem que vir, Doutor. Temos aqui um acidente de viação – está amnésica. Não se lembra de nada.  A não ser…

– A não ser?

– De si. Quer dizer… do seu nome.

Fim de festa. Saio do restaurante, entro na escuridão da noite que se pôs mal disposta – a chuva, irritante, obriga-me a uma corrida quando saio do carro; tropeço no degrau da entrada do hospital, sem consequências de maior a não ser para a minha auto-estima. Um doutor pingado, de sobrolho franzido, refletido nos olhos da Enfemeira-Chefe e de uma perfeita desconhecida que entrou numa noite escura da memória onde o único pirilampo salvador é o meu nome.

– Leonardo! Leonardo Matos, que bom que chegou!

 ( para a Margarida que me ensinou que o melhor dos nossos dias é, tantas vezes, a espuma dos dias )

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